"Perdi a vergonha e o medo de falar. O silêncio é o melhor amigo da pedofilia", afirma Marcelo Ribeiro.
Foi preciso quase três décadas para que o empresário paulista Marcelo Ribeiro tomasse coragem para falar sobre o abuso que sofreu na infância. O professor e maestro de um coral católico - o homem que mais admirava - o agrediu dos 12 aos 16 anos. Um trauma que ele escondeu de todos e de si mesmo até os 42 anos. Foi o medo de perder a mulher que amava, e que se afastava diante das atitudes que ela não entendia, que o motivou a romper o silêncio. “Minha forma de agir era resultado das sequelas do que tinha vivido”, relata. Falar o ajudou a compreender o passado e hoje o estimula a lutar contra o mal que ainda ameaça tantas crianças. “Perdi a vergonha e o medo de falar. O silêncio é o melhor amigo da pedofilia”, assinala Ribeiro, autor do Livro “Sem medo de falar”.
O que o motivou a tornar público o drama de ter sofrido abuso na infância?
Foi somente aos 42 anos que consegui falar que tinha sofrido abuso sexual na infância. Quando percebi que as sequelas que carregava afetavam a relação com minha mulher e isto ocorreu num momento em que estamos tentando nos reconciliar. Ela não conseguia me compreender ou as minhas atitudes, que não condiziam com a minha personalidade. Atitudes que, certamente, eram sequelas de tudo o que tinha vivido. Não queria perdê-la e isto me estimulou a falar, pela primeira vez, sobre o que tinha vivido: fui abusado na infância. A partir deste momento e até escrever o livro, houve um processo de compreensão real do que tinha acontecido.
Você passou 26 anos sem falar sobre o que tinha acontecido?
Joguei no esquecimento e jamais falei sobre o assunto. Foi a proteção que busquei porque tinha muita vergonha de tudo o que aconteceu. Era muito pesado. Até os 42 anos não tinha refletido sobre o assunto, não sabia nem que tinha sido vítima de um pedófilo. Mas a partir do momento em que falei, houve um processo de compreensão, me tornei mais consciente. Houve momentos de raiva, mas com ajuda da minha esposa, pude organizar as lembranças, compreender e entender que tinha sido vítima de abuso sexual, que tinha sido vítima de um pedófilo.
Como seus pais e irmãos reagiram?
Foi difícil para os meus pais, que estão na faixa dos 80 anos. A primeira reação é de raiva, mas num segundo momento tentaram entender o que aconteceu. Há também um sentimento de culpa. E para minha mãe foi ainda mais difícil porque o que me aconteceu foi sob o manto da Igreja Católica e ela sempre fui muito fiel, uma beata... Meus irmãos sentiram demais. Uma de minhas irmãs, inclusive, vestiu a roupa do combate a pedofilia. Quando tudo veio à tona eles também compreenderam certas atitudes minhas no passado. A verdade, como disse minha irmã, sempre coloca as coisas no lugar. Todos me apoiaram muito na decisão de fazer o livro.
Como aconteceu o abuso?
Aos 9 anos entrei para um coral da catedral de minha cidade, no interior de Minas Gerais. Logo depois da escola ia para o coral e só voltava no final do dia. O maestro era um religioso nomeado pelo arcebispo. A forma dele ensinar música seguia os padrões dos colégios católicos, com uma disciplina muito rígida, com muitos castigos físicos: tapas no rosto, croques na cabeça (cascudos). Para conquistar uma obediência absoluta ele utilizou de violência psicológica e física para dominar as crianças que estavam a mercê dele. As lembranças do primeiro abuso são aos 12 anos, mas isso aconteceu até os 16 anos.
Após o primeiro abuso, não conseguiu relatar a seus pais?
O maestro era meu tutor, professor, herói, pessoa a quem admirava muito. Nunca imaginei que ele faria algo errado. Então quando fui vítima, fiquei sem compreender o que tinha vivido. Naquela idade ainda não tinha compreensão do que era sexo. Era uma situação dúbia: se o que tinha acontecido estava errado, estaria contando o que não deveria ter feito, por outro lado, se é o professor que tinha feito, como poderia estar errado?
O que te deu força para enfrentá-lo aos 16 anos, após anos de abuso?
Com o passar dos anos fui tendo uma consciência maior da minha situação. Naquela época morava com ele e outros adolescentes em uma outra cidade. Fui passar férias na casa dos meus pais e vi que as pessoas não viviam na prisão em que eu vivia. O somatório da busca pela liberdade com a consciência de que estava sendo abusado me deu forças para enfrentá-lo.
Como foi voltar para casa, em silêncio?
Não foi uma convivência normal. Voltei preconceituoso, agressivo, intempestivo, com acessos de fúria. Estava sempre armado, com a sensação de que tinha que me proteger das pessoas. Assim que voltei para casa fui para a capital (Belo Horizonte), estudar. Retornei dois anos depois, mas as sequelas do segredo que escondia tornavam a convivência com meus irmãos muito difícil.
Durante o resgate de seu passado, descobriu que outros colegas também tinham sido abusados.
Até os 42 anos achava que tudo aquilo só tinha acontecido comigo. A partir das minhas reflexões e recuperando a memória, percebi que outros também foram abusados, o que pude confirmar quando fiz contato com alguns amigos da época. A partir daí, analisando o que aconteceu, sei que o maestro continuou abusando de outras crianças, e talvez ainda abuse.
Teve vontade de se vingar?
Lógico. A primeira sensação é de raiva, de fazer justiça com a próprias mãos, principalmente quando descobre que o crime prescreveu, que a Justiça não tem como fazer justiça. Minha mulher foi fundamental neste processo, ao me ajudar a pensar com uma consciência mais elevada, a compreender a humanidade do abusador, e o que leva uma pessoa a isto, até para conseguir perdoar, mesmo sem aceitar.
Você faz críticas à legislação.
No sentido de conscientizar de que a legislação precisa melhorar. Já houve avanços quando a nadadora Joana Maranhão denunciou os abusos sofridos aos 9 anos, praticado por seu técnico. A lei melhorou um pouco, principalmente no caso da prescrição, mas os casos de abuso são formadores de trauma e, geralmente, a pessoa não é capaz de falar sobre o assunto a vida inteira. Então, este tipo de crime não pode ter prescrição, não por causa da punição dos casos que já ocorreram, mas para que a sociedade possa proteger as crianças hoje. É um dos nossos grandes desafios.
O combate à pedofilia se transformou em sua bandeira.
Nós sabemos que é difícil falar sobre este tipo de crime, que é formador de estigma. A sociedade o vê como tabu e quando alguém fala, as pessoas viram as costas, preferem imaginar que não ocorrerá com elas. A minha necessidade de falar é maior no sentido de acabar com o silêncio, com o seu estigma, de expor o abusador. E quanto mais se falar sobre o assunto, mais fácil será para as vítimas compreenderem o que acontece quando ela for vítima, saberá o que falar. O problema é que a pedofilia só é discutida entre adultos, é difícil falar sobre isso com as crianças. Mas a partir do momento em que o assunto for debatido na escola, que as crianças puderem compreender o que é a pedofilia, aí teremos uma sociedade mais protegida contra os abusadores.
Quais dicas dá para os pais?
Lembro, de quando era criança, de minha mãe me orientar a ter cuidado com tarados na rua. A visão das pessoas é de que o abusador é um estranho que vai pegar seu filho a força. O histórico dos abusos mostra que, geralmente, eles são pessoas próximas: vizinhos, parentes, professores. Cabe aos pais uma atenção a detalhes. Não se influenciem pela religião, sobrenome, parentesco, amizade. Não confiem cegamente em instituições e pessoas. Fiquem atentos a qualquer mudança de comportamento de seus filhos. Mas, acima de tudo, ajudem a pressionar para que haja mudanças na legislação para que, assim como a Lei Maria da Penha, tenhamos também uma legislação que garanta a proteção preventiva e não punitiva.
Hoje você é um empresário. Como seus novos amigos reagiram?
Os antigos amigos deram apoio, elogiaram minha atitude. Os novos amigos aceitaram com tranquilidade, entenderam que é um processo pessoal. A partir do meu relato, pessoas do meu círculo de amizade me relataram que também tinham enfrentado o mesmo drama e que nunca tiveram coragem de falar. Também recebi relatos de pessoas desconhecidas. Então, o falar sobre o assunto acaba sendo um estímulo para atingir o maior número de pessoas, nos dá força para ampliar a batalha contra a pedofilia.
O que o motivou a tornar público o drama de ter sofrido abuso na infância?
Foi somente aos 42 anos que consegui falar que tinha sofrido abuso sexual na infância. Quando percebi que as sequelas que carregava afetavam a relação com minha mulher e isto ocorreu num momento em que estamos tentando nos reconciliar. Ela não conseguia me compreender ou as minhas atitudes, que não condiziam com a minha personalidade. Atitudes que, certamente, eram sequelas de tudo o que tinha vivido. Não queria perdê-la e isto me estimulou a falar, pela primeira vez, sobre o que tinha vivido: fui abusado na infância. A partir deste momento e até escrever o livro, houve um processo de compreensão real do que tinha acontecido.
Você passou 26 anos sem falar sobre o que tinha acontecido?
Joguei no esquecimento e jamais falei sobre o assunto. Foi a proteção que busquei porque tinha muita vergonha de tudo o que aconteceu. Era muito pesado. Até os 42 anos não tinha refletido sobre o assunto, não sabia nem que tinha sido vítima de um pedófilo. Mas a partir do momento em que falei, houve um processo de compreensão, me tornei mais consciente. Houve momentos de raiva, mas com ajuda da minha esposa, pude organizar as lembranças, compreender e entender que tinha sido vítima de abuso sexual, que tinha sido vítima de um pedófilo.
Como seus pais e irmãos reagiram?
Foi difícil para os meus pais, que estão na faixa dos 80 anos. A primeira reação é de raiva, mas num segundo momento tentaram entender o que aconteceu. Há também um sentimento de culpa. E para minha mãe foi ainda mais difícil porque o que me aconteceu foi sob o manto da Igreja Católica e ela sempre fui muito fiel, uma beata... Meus irmãos sentiram demais. Uma de minhas irmãs, inclusive, vestiu a roupa do combate a pedofilia. Quando tudo veio à tona eles também compreenderam certas atitudes minhas no passado. A verdade, como disse minha irmã, sempre coloca as coisas no lugar. Todos me apoiaram muito na decisão de fazer o livro.
Como aconteceu o abuso?
Aos 9 anos entrei para um coral da catedral de minha cidade, no interior de Minas Gerais. Logo depois da escola ia para o coral e só voltava no final do dia. O maestro era um religioso nomeado pelo arcebispo. A forma dele ensinar música seguia os padrões dos colégios católicos, com uma disciplina muito rígida, com muitos castigos físicos: tapas no rosto, croques na cabeça (cascudos). Para conquistar uma obediência absoluta ele utilizou de violência psicológica e física para dominar as crianças que estavam a mercê dele. As lembranças do primeiro abuso são aos 12 anos, mas isso aconteceu até os 16 anos.
Após o primeiro abuso, não conseguiu relatar a seus pais?
O maestro era meu tutor, professor, herói, pessoa a quem admirava muito. Nunca imaginei que ele faria algo errado. Então quando fui vítima, fiquei sem compreender o que tinha vivido. Naquela idade ainda não tinha compreensão do que era sexo. Era uma situação dúbia: se o que tinha acontecido estava errado, estaria contando o que não deveria ter feito, por outro lado, se é o professor que tinha feito, como poderia estar errado?
O que te deu força para enfrentá-lo aos 16 anos, após anos de abuso?
Com o passar dos anos fui tendo uma consciência maior da minha situação. Naquela época morava com ele e outros adolescentes em uma outra cidade. Fui passar férias na casa dos meus pais e vi que as pessoas não viviam na prisão em que eu vivia. O somatório da busca pela liberdade com a consciência de que estava sendo abusado me deu forças para enfrentá-lo.
Como foi voltar para casa, em silêncio?
Não foi uma convivência normal. Voltei preconceituoso, agressivo, intempestivo, com acessos de fúria. Estava sempre armado, com a sensação de que tinha que me proteger das pessoas. Assim que voltei para casa fui para a capital (Belo Horizonte), estudar. Retornei dois anos depois, mas as sequelas do segredo que escondia tornavam a convivência com meus irmãos muito difícil.
Durante o resgate de seu passado, descobriu que outros colegas também tinham sido abusados.
Até os 42 anos achava que tudo aquilo só tinha acontecido comigo. A partir das minhas reflexões e recuperando a memória, percebi que outros também foram abusados, o que pude confirmar quando fiz contato com alguns amigos da época. A partir daí, analisando o que aconteceu, sei que o maestro continuou abusando de outras crianças, e talvez ainda abuse.
Teve vontade de se vingar?
Lógico. A primeira sensação é de raiva, de fazer justiça com a próprias mãos, principalmente quando descobre que o crime prescreveu, que a Justiça não tem como fazer justiça. Minha mulher foi fundamental neste processo, ao me ajudar a pensar com uma consciência mais elevada, a compreender a humanidade do abusador, e o que leva uma pessoa a isto, até para conseguir perdoar, mesmo sem aceitar.
Você faz críticas à legislação.
No sentido de conscientizar de que a legislação precisa melhorar. Já houve avanços quando a nadadora Joana Maranhão denunciou os abusos sofridos aos 9 anos, praticado por seu técnico. A lei melhorou um pouco, principalmente no caso da prescrição, mas os casos de abuso são formadores de trauma e, geralmente, a pessoa não é capaz de falar sobre o assunto a vida inteira. Então, este tipo de crime não pode ter prescrição, não por causa da punição dos casos que já ocorreram, mas para que a sociedade possa proteger as crianças hoje. É um dos nossos grandes desafios.
O combate à pedofilia se transformou em sua bandeira.
Nós sabemos que é difícil falar sobre este tipo de crime, que é formador de estigma. A sociedade o vê como tabu e quando alguém fala, as pessoas viram as costas, preferem imaginar que não ocorrerá com elas. A minha necessidade de falar é maior no sentido de acabar com o silêncio, com o seu estigma, de expor o abusador. E quanto mais se falar sobre o assunto, mais fácil será para as vítimas compreenderem o que acontece quando ela for vítima, saberá o que falar. O problema é que a pedofilia só é discutida entre adultos, é difícil falar sobre isso com as crianças. Mas a partir do momento em que o assunto for debatido na escola, que as crianças puderem compreender o que é a pedofilia, aí teremos uma sociedade mais protegida contra os abusadores.
Quais dicas dá para os pais?
Lembro, de quando era criança, de minha mãe me orientar a ter cuidado com tarados na rua. A visão das pessoas é de que o abusador é um estranho que vai pegar seu filho a força. O histórico dos abusos mostra que, geralmente, eles são pessoas próximas: vizinhos, parentes, professores. Cabe aos pais uma atenção a detalhes. Não se influenciem pela religião, sobrenome, parentesco, amizade. Não confiem cegamente em instituições e pessoas. Fiquem atentos a qualquer mudança de comportamento de seus filhos. Mas, acima de tudo, ajudem a pressionar para que haja mudanças na legislação para que, assim como a Lei Maria da Penha, tenhamos também uma legislação que garanta a proteção preventiva e não punitiva.
Hoje você é um empresário. Como seus novos amigos reagiram?
Os antigos amigos deram apoio, elogiaram minha atitude. Os novos amigos aceitaram com tranquilidade, entenderam que é um processo pessoal. A partir do meu relato, pessoas do meu círculo de amizade me relataram que também tinham enfrentado o mesmo drama e que nunca tiveram coragem de falar. Também recebi relatos de pessoas desconhecidas. Então, o falar sobre o assunto acaba sendo um estímulo para atingir o maior número de pessoas, nos dá força para ampliar a batalha contra a pedofilia.