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Nossas Histórias

ESSE BLOG É PARA CONTARMOS AS NOSSAS HISTÓRIAS, MOSTRAR A NOSSA LUTA E A NOSSA VITÓRIA...

sábado, 25 de abril de 2015

Depoimento da J.V.

Olá, sou uma mulher de 32 anos, mãe de dois "anjinhos" (3 anos / 02 meses), casada e advogada.

Advogo há 09 anos em uma instituição que tem como objetivo a proteção dos direitos da criança e do adolescente em situação de risco.

Dentre outras violações de direitos, combatemos com veemência a exploração e o abuso sexual infanto-juvenil. Esse é um tema muito importante de ser discutido e ainda pouco conversado e divulgado.

Não foi por acaso (até porquê não acredito em acaso) que fui parar em uma instituição como essa.

Quando eu tinha aproximadamente 05 anos fui abusada pelo marido da minha tia com quem eu e minha família tínhamos os laços mais estreitos e cujos filhos eram os primos mais chegados.

Minha família sempre passava as férias de julho e janeiro na cidade onde eles moram e infelizmente, valendo-se da confiança que eu tinha no meu "tio" ele cometeu esse crime, o qual perdurou por aproximadamente 05 anos.

Minha família é extremamente tradicional e um escândalo desse vir à tona seria um "absurdo". Assim o muro de silêncio perdurou ou melhor perdura até hoje.

Eu era muito pequena e o que ele fazia não me provocava dor, era até gostoso (essa frase eu demorei anos de terapia para assumir). Lógico, ele era meu tio mais próximo e tocava em zonas erógenas.... logo não era ruim. Por um tempo! Eu não sabia exatamente o que ele fazia ou porque fazia. Por que era só comigo? Eu era a preferida? Hummm isso seria interessante para uma menina de 05 anos. Mas o tempo passou e fui começando a entender que aquilo não era tão legal, que me incomodava, que eu não pedia por aquilo. Não era meu desejo e comecei a ter vergonha... nojo...culpa.... Sentimentos muito pesados para uma criança....

Todas as noites, enquanto eu estava hospedada em sua casa, ele vinha ao quarto em que as crianças ficavam, se aproximava da minha cama e praticava atos sexuais comigo. Por não entender o que acontecia, sempre preferi me manter de olhos fechados, imóvel, fingindo estar dormindo.
Com o passar dos anos, fingia estar acordando, me mexia, fazia barulhos para as outras crianças acordarem, na tentativa de fazer pará-lo. Quando eu estava com aproximadamente 10 anos, os abusos cessaram.

Me mantive quieta por muitos anos. Tinha muita vergonha do que tinha acontecido. Mas meus pais adoravam meus tios! Eu não podia revelar essa história.

Na verdade, com toda a minha inocência de menina, eu tentei revelar a história, mas os adultos não tiveram “ouvidos de ouvir”.

Soube já adulta que certa vez, os adultos falavam algo relacionado a namoro ou sexo e eu (com apenas 05 anos) interrompi a conversa e perguntei se era igual o meu tio fazia comigo. Todos trataram de me tirar do quarto, dizendo para eu ir brincar.

 Já em outra oportunidade (dessa eu me lembro) falei para a minha mãe e para os meus primos que eu havia sonhado que o abuso tinha acontecido. Ouvi: Credo, Deus me livre... vamos, vamos almoçar....

Eu tenho uma irmã mais nova, que sempre foi minha princesa e era muito apegada a mim. Já que os adultos não me ouviram, eu resolvi protegê-la. Mesmo com pouca idade (acho que ela tinha uns 5 anos e eu 11), expliquei pra ela que aquele homem não era bom e que se algum dia ele encostasse nela, que ela deveria gritar e me chamar. Conversamos por muito tempo e por menor que ela fosse, ela entendeu e lembra até hoje dessa conversa. Sempre a mantive perto de mim durante as férias, com medo do monstro se aproximar dela.

Fato é que aos 14 anos, com muitos conflitos internos, reuni forças e contei para a minha mãe. Ela ficou muito enfurecida, chorou, adoeceu, mas não pareceu 100% surpresa. No fundo ela desconfiava que algo havia acontecido comigo, mas preferiu achar que era coisa da cabeça dela... Imagina... uma família tão tradicional com uma história dessa... era muito para a cabeça de uma mulher que acabava de sair de uma separação muito dolorosa com meu pai.

Acontece que com 14 anos você não consegue compreender muito bem os sentimentos dos pais.... talvez com 32 também não.... Ela ficou brava, chorou, adoeceu....mas não me defendeu.... Ela preferiu se afastar daquela família mas  ficar em silêncio... "Deus faria justiça"....

E um sentimento de abandono ficou (ainda fica um pouco) instaurado no meu coração.... Como ela não foi lá e deu um tiro na cara dele?  Um tapa pelo menos... Por que não contou pra família toda? Para a minha tia? .... A tradicional família não poderia sofrer esse abalo...

O tempo passou... Com 25 anos, antes de me casar contei para o meu pai. No fundo eu nutria aquela fantasia de que quando o meu pai soubesse, o mundo viria abaixo....

Realmente ele ficou muito bravo! Deu socos pelas paredes! Chorou! Mas... não me defendeu....

Amo meus pais, sei que eles me amam também, mas não souberam agir, o que me trouxe muitos transtornos ao longo da minha vida. Muitos mesmos. Os danos e marcas de um abuso são profundos e desestruturam as vítimas.

Entendi, então, que somente eu mesma poderia me defender. Então, antes de me casar eu deveria fazer isso por mim, pelo meu marido e pelos meus futuros filhos...Eu queria recomeçar.

Fui à cidade dele, falei com ele depois de tantos anos... disse o nojo que sentia, mas consegui falar muito menos do que eu gostaria.... minhas pernas tremiam e minha oratória sempre tão afiada, nunca havia ficado tão monossilábica.

Mas eu tinha que fazer alguma coisa. Polícia? Impossível! O crime que ele cometeu havia prescrito há muito tempo.... Contei para todas as pessoas da minha família, que tinham filhos, o que havia me acontecido, dizendo que mantivessem seus filhos longe do monstro.

Qual não foi a minha surpresa, senão saber que além de mim, muitas outras primas haviam sido molestadas. Primas até 20 anos mais velhas, ou seja, o abuso atingiu várias gerações. A maioria dos pais das vítimas também já sabiam... mas nunca fizeram nada... Todas estavam tratando disso em divãs de analistas... mas ninguém na polícia....

Muito triste... isso ainda existe!

Voltei para casa com a sensação de impotência, impunidade. Sentia que eu era aquela mesma menina acuada de 09 anos de idade que já não queria mais que aquilo acontecesse....

Mais sessões de análise.... eu precisava elaborar um pouco meu passado para prosseguir... casar.. ter filhos... uma família.

Certa feita, quando eu engravidei do meu primeiro filho, meu marido foi até a cidade do monstro, o pegou pela camisa e disse que se ele quisesse o mataria naquela hora mesmo, mas que ele era um velho podre, acabado, que não valeria a pena sujar suas mãos... Disse que se ele dirigisse sequer seu olhar em minha direção, ele seria um homem morto. Disse que eu estava grávida e que ele jamais, em tempo algum, se aproximasse do nosso filho... Confesso que esse dia, vendo a cara de medo daquele animal, que depois de tantos anos e tanta bebida, se esconde atrás de uma carcaça velha e sem vida, me senti protegida... um pouco pelo menos.... a única vez....

Essa é uma história de muitos meandros, muitos capítulos, mas não vale a pena relatar os detalhes sórdidos. Acho que todos podem imaginá-los. Mas o que quero com esse depoimento não é me fazer de vítima, de coitada.  Não o sou. Dentro da minha realidade, sou muito feliz hoje. Amo e sou amada, tenho filhos maravilhosos... e protegidos.... não posso reclamar. Mas posso ajudar. Alertar aos pais que fiquem atentos a seus filhos. Óbvio, sem paranoias. Mas com muita atenção!

Conversar com os filhos é fundamental. Eles precisam ter confiança  nos pais para lhes contar o que for preciso, mesmo se sentirem culpados por algo.... E se infelizmente o pior vier a acontecer, que os pais façam o correto. Ajam! Vão à polícia, investiguem, corram atrás. Façam o possível e o impossível para essa atrocidade não ficar impune. Isso é dever dos pais. Não só dos pais mas de toda a sociedade assim como a própria Constituição Federal prevê.

Não podemos fechar os olhos para essa realidade... Será mesmo que nossos filhos estão protegidos? Será que estamos atentos ao que se passa com eles?

Tenhamos ouvidos de ouvir. Os filhos mandam mensagens de seus sentimentos o tempo todo para os pais. Cabe a nós, pararmos um pouco para ouvi-los. Precisamos tentar evitar o abuso sexual. Ele acontece em todas as classes sociais e geralmente parte de quem menos esperamos.

Nossos filhos precisam da nossa proteção. Juntos e sem medo de falar nesse assunto poderemos divulgar cada vez mais os mecanismos de prevenção, proteção e defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes.

Urge derrubarmos esse muro de silêncio que se instaura em torno desse assunto!

Um grande abraço.



J. V.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Depoimento de E. N.

" Eu fui uma de tantas crianças que foram abusadas sexualmente na infância por meu pai.

Não fui a primeira nem a última.

Antes de me abusar, ele já abusara de crianças e adolescentes, tanto na família de origem dele como na da minha mãe.
Minhas lembranças de ter sido abusada por ele, vêm desde a época que eu ainda ia ao jardim de infância. Meu pai me assediava diariamente e esta tortura durou por toda minha infância e também adolescência, quando comecei a tentar me esquivar dele e a protestar contra suas investidas.
Como é comum de abusadores deste tipo, desde pequenina meu pai fazia chantagens emocionais comigo, pedia que eu guardasse segredo, como prova de meu amor por ele, pois caso contrário ele afirmava que seria preso.
Ele dizia que as pessoas não entenderiam este amor dele por mim.
Segundo ele, este amor que ele dizia sentir por mim era o maior que ele já tivera.
Ele dizia não sentir amor por minha mãe e sim por mim.
Meus conceitos de certo ou errado, ficaram afetados por muitos anos, pois o conflito de querer acreditar que meu pai estava certo, como toda criança acredita e a sensação de que algo estava muito errado, por causa do segredo que ele me fazia guardar, fizeram com que eu tivesse uma percepção muito distorcida da realidade durante a minha infância.
Jamais consegui ter proximidade com minha mãe ou ser amiga dela, nem eu sentia que ela era minha amiga, pois meu pai dizia que ela sentiria muitos ciúmes e raiva de mim se um dia soubesse que ele amava mais a mim do que a ela.
Assim, como defesa, eu passei a sentir raiva dela desde criança.
Anos mais tarde, quando eu já era adulta, fiquei sabendo que ela tinha conhecimento de que meu pai abusara de pessoas na família dela também, antes de eu nascer.
Sabendo disto não consegui mais ter respeito por ela depois de perceber que, apesar de ela saber que meu pai continuava a abusar sexualmente de crianças, ela ainda insistia tanto em querer ficar ao lado dele.
Acho importante transmitir às pessoas o quanto o abuso sexual se estende para muito além do próprio abuso sexual.
Isso afeta a vida das pessoas no sentido mais intenso e mais extenso que qualquer tipo de violência pode causar, ao mesmo tempo que deixa a pessoa viva para sofrer a dor do abandono, da traição e do desamor.
Minha baixa auto estima, meu sentimento derrotista e minhas dificuldades de relacionamentos culminaram em uma forte depressão aos meus 26 anos, quando fui abandonada por um namorado, que apesar de ser médico, dizia não conseguir conviver com meus estados depressivos.
Como muitas das vítimas de abuso sexual na infância, eu também não quis mais viver…
Após longo período de hospitalização, psicoterapia e antidepressivos, tive retomada a vontade de viver.
Mas o principal motivo, foi acreditar que eu era amada por aqueles que me socorreram: meus próprios pais.
Pedidos de desculpas, foram encarecidamente apresentados, assim como cumprimentos de novenas e promessas de que meu pai jamais abusaria sexualmente de qualquer pessoa novamente, em troca do meu perdão.
Ele se declarava "curado"!
Jurava que eu podia acreditar nele a partir de então.
Eu era a pessoa que mais queria acreditar nisso.
Eu acreditei que a iminência da minha própria morte o fizera perceber o quanto ele havia me machucado e o perdoei tentando recomeçar uma vida nova.
Eu não fazia idéia ainda, de que a história acontecida comigo voltaria a se repetir por muitos anos afora.
Mais tarde, depois de perceber toda a farsa, ao me dar conta de que ele voltara a abusar sexualmente de crianças, passei anos me debatendo em brigas com meu pai e ele tentando convencer as pessoas de que eu era louca.
Todas as tentativas de fazer com que as pessoas acreditassem em mim foram inúteis.
As pessoas da minha família achavam que eu tinha uma obsessão em suspeitar dele por causa do que eu havia vivido na infância.
Fiquei mais uma vez isolada, desta vez por trazer a verdade à tona e tentar proteger novas vítimas.
Sem as interferências negativas de minha família, consegui me fortalecer, apesar de ter carregado ainda por muitos anos o sentimento de culpa de que se um dia eu fosse tornar pública uma denúncia contra meu pai, eu iria destruir minha família.
Apesar disso, a idéia não me saia da cabeça, pois eu sabia que ele continuava a molestar crianças, mas eu me sentia ainda acuada e isolada para tomar uma atitude em relação a isso.
Tudo mudou, quando tomei conhecimento da ASCA, uma organização de sobreviventes de abuso sexual na infância aqui na Austrália.
Ao ouvir as histórias de outras sobreviventes, me dei conta de como minha história se repetia na vida de tantas outras pessoas que eu nem conhecia e também de como ficava mais claro olhar de fora a experiência destas pessoas e analisar meus próprios traumas.
Além dos encontros, outras formas de ensinamentos compartilhados foram a intensa leitura de obras literárias de outros sobreviventes, de terapeutas do ramo e de pesquisas.
Com tudo isso, passei a não me sentir mais isolada e sim fortalecida.
Eu me conscientizei, a partir de então, que era meu direito reclamar minha dignidade e também era meu dever alertar as pessoas para proteger novas vítimas de meu pai.
Denunciei meu pai por escrito às autoridades Brasileiras.
Decidi que ninguém mais me faria calar todas as angústias e repressões que eu tinha atravessadas na garganta por toda minha vida.
Foi a partir daí que a coisa começou a tomar jeito.
A promotoria apresentou a denúncia e com o tempo outras vítimas de meu pai começaram a confirmar os abusos.
Quando o abusador já estiver em idade avançada, como no caso de meu pai, as pessoas se deixam influenciar pela aparência do velho frágil e desprotegido, sem se dar conta de que por trás daquela imagem ilusória existe uma pessoa perigosa.
Outro problema que ainda existe é a crença de que crianças querem seduzir os adultos através do sexo.
Não existe como a vítima ver no terapeuta o seu aliado, se este não acredita na inocência, tanto do ato, como da intenção desta.
Quebrar o silêncio é o primeiro passo para isso.
Entretanto, também é necessário que esta possa se valer de direitos e de mecanismos legais de proteção e de reconhecimento e de respeito pelos danos sofridos.
A falta de legislação adequada que garanta a proteção das vítimas e testemunhas, bem como o afastamento definitivo do abusador de suas vidas, faz com que a grande maioria jamais reclame ou tome a iniciativa de denunciar os abusadores.

terça-feira, 14 de abril de 2015

Depoimento da Fernanda

Desde que me lembro na minha infância meu pai era alcoólatra, e os meus pais brigavam muito, minha mãe era até mesmo agredida por ele.
Lembro que não consegui aproveitar muito da infância, não lembro da minha mãe sentar brincar comigo ou fazer coisas de mãe e filha, ela trabalhava muito, creio eu que para fugir daquela situação que vivia, e por isso  deixava eu e minhas irmãs na mãos de pessoas estranhas ou na casa de parentes, e algumas dessas pessoas não eram boas, fui abusada até mesmo por pessoas muito próximas a mim até os meus 12 anos, além do abuso sexual também houve abuso emocional, dentro de casa não tinha apoio de ninguém, minha mãe na verdade não tinha como me ajudar pois não sabia oque havia acontecido comigo, então a maneira dela queria me proteger, sendo assim não deixava eu nem ter amigos, como dever queria que eu cuidasse das minhas irmãs menores e da casa, eu era apenas uma criança, enfim cresci uma adolescente depressiva, sem nenhuma auto estima, sofri booling na escola, não sabia me socializar.
Sempre fui a igreja, mais aos 19 anos comecei a ir em uma igreja, onde muitas pessoas me ajudaram e entenderam minha situação, então comecei a passar por um processo, onde cada ferida dessa começou a ser aberta, foi muito difícil para mim passar por um processo doloroso assim, mais valeu apena, hoje tenho uma família, minha família, meus filhos, um marido dedicado, e me abri com ele sobre isso logo no noivado e ele compreendeu minha situação, falar disso antes era difícil, dolorido e sofria muito, hoje estou aliviada em poder compartilhar tudo isso é poder ajudar pessoas com meu depoimento. 
Superei tudo para continuar sonhando, vivendo e proporcionando aos meus filhos tudo oque não me foi dado na infância, sou feliz hoje pois através de tudo oque Deus me deu, posso viver em paz.
Claro que a vida continua e outras dificuldades vêm, mais tenho forças para supera-las e seguir em frente.

A TERRÍVEL HISTÓRIA DE SEVERINA

“Nunca estudei, nunca tive amiga, nunca arrumei namorado na vida, nunca saí para ir a festas. Até os 38 anos, vivi assim e foi assim até quando me desliguei do meu pai, no dia em que ele foi morto.
Meu pai não deixava eu e minhas irmãs fazer nada. Comecei a trabalhar na roça com seis anos.
Aos nove, fui com meu pai para o roçado. No caminho, ele me levou para o mato, amarrou minha boca com a camisa e tentou ser dono de mim. Eu dei uma “pesada” no nariz dele, e ele puxou uma faca para me sangrar. A faca pegou no meu pescoço e no joelho. Depois, ele tentou de novo, mas não conseguiu ser dono de mim.
Em casa, contei para minha mãe e ela me deu uma pisa (surra). Fiquei sem almoço.
À noite, minha mãe foi me buscar e me levou para ele, que me abusou. No outro dia, fui andar e não consegui. Falei: ‘Mãe, isso é um pecado’. E ela: ‘Não é pecado. Filha tem que ser mulher do pai’.
A partir daquele dia, três dias por semana ele ia abusando de mim. Com 14 anos eu engravidei. Tive o filho e ele morreu. Eu tive 12 filhos com meu pai. Sete morreram. Seis foram feitos na cama da minha mãe. Dormíamos eu, pai e mãe na mesma cama. Um dia, uma irmã minha disse que estava interessada em um namorado. O pai quis pegar ela, disse que já tinha um touro em casa.
Eu mandei minha mãe correr com minha irmã. Depois disso, minha mãe não ficou mais com ele. Foram para a casa do meu avô em Caruaru. Ela e as minhas oito irmãs. Só ficamos eu e meu pai na casa. Eu tinha 21 anos, e ele sempre batia em mim. Tentei me matar várias vezes, botei até corda no pescoço.
Os filhos nasciam e morriam. Os que vingavam foram se criando. Minha filha estava com 11 anos quando ele quis ser dono dela. Eu disse para ele: ‘Se você ameaçar a minha filha, você morre.’ Meu pai me bateu três dias seguidos.
Um dia, ele amolou a faca e foi vender fubá. Antes, disse: ‘Rapariga safada, se você não fizer o acordo, vai ver o começo e não o fim’. Ele foi para a feira e eu para a casa da minha tia. Foi quando paguei para matarem ele.
Peguei um dinheiro guardado e paguei ao Edilson R$ 800 na hora. Quando o pai chegou, Edilson e um amigo fizeram o homicídio.
A minha filha, a filha dele, eu salvei. Quem é pai, quem é mãe, dói no coração.
Antes disso, eu ainda procurei os meus direitos, mas perdi. Há uns 15 anos, fui na delegacia, mas ouvi o delegado falar para eu ir embora com o velhinho (o pai), que era uma boa pessoa. O homicídio foi no dia 15 de novembro de 2005. No cemitério já tinha um carro de polícia me esperando. Na cadeia passei um ano e seis dias. Depois do julgamento, fiquei feliz. Agora, quero viver e ficar com meus filhos.”
XXX
NOTA: "Durante a acusação, o promotor do Ministério Público de Pernambuco, José Edvaldo da Silva, surpreendeu os presentes ao júri pedindo a absolvição da ré. Para ele, a acusada foi vítima de coação moral irresistível. E foi além: "O Estado não poderia exigir que a forma encontrada por ela para se defender fosse outra, ainda que envolvendo violência", defendeu, contrariando a posição inicialmente adotada pelo MPPE, que solicitou o desaforamento do júri de Caruaru para o Recife alegando suspeita quanto à imparcialidade do corpo de jurados.
Milhares de crimes não julgados
“Eu não poderia, nem teria condições éticas, de pedir a condenação desta mulher quando não se poderia exigir dela outra conduta e quando ela deveria era ser indenizada pelo Estado”, ponderou o promotor, evidenciando o fato de que, entre sucessivos estupros e agressões físicas e psicológicas, Severina foi, de fato, vítima de mais de cinco mil crimes não julgados ou investigados.